Kung Fu e o Sam-Faat
Kung Fu e o Sam Faat
Na China, se distinguem dois níveis: o primeiro nível é do homem de bem, aquele que faz esforços, um após o outro, e o nível superior é o sábio.
O momento interessante é quando acontece a passagem do homem de bem (fazendo esforços) ao sábio, [já que a pessoa] torna-se [como tal] por si mesma. Isso quer dizer que este é o momento, onde nós investimos (Kung Fu).
E do investimento nasce o contrário do esforço que é a facilidade. Na China, dizem o tempo todo que é fácil. Para o sábio é fácil. Assim, a dificuldade transforma-se em facilidade, tal qual é possível pelo Kung Fu. O Kung Fu, o esforço acumulado, o tempo, se reverte e chega por si mesmo. A passagem de um para outro é o Kung Fu.
Este mecanismo que faz refletir e não se entende bem como isto se distingue da ação, por exemplo. Você se investe, se dedica, faz esforço dia após dia. Mas deste esforço (dia após dia), sem perceber, um resultado emerge progressivamente, que é o contrário do esforço, o “vem por si mesmo”. É o exemplo do piano: você toca, toca… repete, repete e um dia “ele” vem. Você aprende uma aula a noite [que] é difícil. [Mas], no dia seguinte, você sabe essa lição de cor.
Esta transformação, esta reversão do esforço para o seu contrário (a facilidade), é o resultado despercebido deste investimento do Kung Fu. Ele investe e o investimento produz sem perceber um fruto, sem que você saiba como se passou da dificuldade para a facilidade. No investimento que se faz, algo progressivamente amadureceu, [que é] o contrário da dificuldade, e que faz com que ele venha por si mesmo. Chama-se a “ imanência”. Chega naturalmente sem pensar.
Acho isto interessante porque nós não temos o equivalente no pensamento europeu, onde não foi analisado como do investimento e do esforço pode nascer o contrário.
Mesmo vendo que isso acontece ao aprender a tocar piano ou dirigir. Se faz esforço e um dia chega espontaneamente. Tenho o conforto, a facilidade e isto é o resultado do Kung Fu.
Nas artes marciais, isto é muito importante. É a mesma noção básica. Ao mesmo tempo, é preciso aprender as sequências de movimentos, repeti-los, etc. Sem perceber que desta repetição cansativa, alguma coisa progressivamente emerge, fazendo que progressivamente tenhamos facilidade. Isto chega naturalmente sem pensar. Esta inversão que acho interessante como sendo o resultado do Kung Fu, o investimento paciente.
Então eu traduziria por “investimento paciente de onde resulta e amadurece a facilidade”.
[Gostaria de] relacionar o Kung Fu com [ a noção de “justo] meio”. Como o “meio” não é o termo intermediário, a meio caminho entre dois extremos. Então é somente pelo investimento interior paciente que posso progressivamente entender qual é este equilíbrio de movimento. Porque não há regra. Eu oponho o que é regra (imóvel) ao que é, do lado chinês, a regulação, a transformação. Para aprender a regulação do combate, você não pode aprendê-la como se fosse uma regra. É preciso aprendê-la pelo investimento paciente, pelo Kung Fu, e é [progressivamente que] de seu investimento, de sua dedicação na situação, você pode progressivamente adquirir este sentido da regulação que chega espontaneamente, naturalmente. Tem então alguma coisa que devemos educar em nós mesmos pelo investimento, pelo Kung Fu. É preciso educar para que progressivamente o sentido da regulação nos chegue espontaneamente.
Nas Entrevistas de Confúcio, o que ele pergunta a seus discípulos é de se investir de um jeito que vem por si mesmo, este sentido do “justo equilíbrio”, da “justa adequação”. É por isso que lendo o início das Entrevistas de Confucio, as pessoas dizem que não é de jeito nenhum interessante. Não há regras, não há normas, não há codificações, não há aulas…não se fala nada. Mas Confúcio mostra como, falando com um discípulo após o outro, ele dá um ‘toque’ para que percebam qual seria a regulação. Isto não é intelectualizado. Ele percebe a partir de uma situação, qual é a regulação que pode estar em jogo. Os ensinamentos de Confúcio não são teóricos. É achar ‘frente-a-frente’, um ou outro, o que pode desbloquear o discípulo e fazer entender a regulação.
O livro de Confúcio é, de fato, um livro de Kung Fu, de invetimento. Confúcio pede este investimento atento, dia após dia, e que deve justamente dar o “justo equilíbrio” para a situação. Equilíbrio não para de variar diante da situação. Então há uma base previsível para uma regra.
Eu proponho um texto que ilustra muito bem o Kung Fu, noção essencial para as artes marciais, mas do ponto de vista de Confúcio e então numa relação de formação da sabedoria.
Tradução e comentário de um texto de um discípulo: “Quanto mais levanto os olhos, mais é alto. Quanto mais eu cavo mais é duro. Eu vejo na minha frente e de repente está atrás”.
Então, não existe uma regra e é preciso investir-se. O discípulo tem o sentimento que está fora de seu entendimento, mas quando ele acha que está fora de seu alcance, vem por si mesmo.
“O Mestre Confúcio, de maneira progressiva, consegue orientar os homens. Ele me abre através das letras. Ele me controla através das rédias”.
Ao mesmo tempo, ele expande e faz o contrário. “Gostaria de abandonar, mas não posso e quando estou no final de minhas forças, é como se tudo aparecesse a minha frente”. Você vê o sentimento de confusão do discípulo. Ele quer regras. Ele quer aprender, mas o que Confúcio lhe dá no final? O melhor, pois esta apredizagem pelo Kung Fu, pelo investimento pessoal, [ele] pode perceber em cada situação, qual é o equilíbrio, a regulação. Mas isto nunca é transmitido de um jeito concreto e imóvel. Olho para cima e me parece mais alto. Acho que está na frente, mas está atrás. Me desespero e isso aparece! Você vê o que é importante.
No ensino das artes marciais, é exatamente a mesma coisa. Na minha opinião, o ensino das artes marciais chinesas é totalmente modelado a partir deste ensino da sabedoria.
[Quanto] à evolução do termo Kung Fu, eu acho que este termo é uma noção muito implícita em chinês. Isto significa que eles não a explicitaram. Os chineses têm uma certa evidencia desta noção. É alguma coisa que não se pode explicitar totalmente, por isso o Sam Faat. Os chineses não refletiram ainda suficientemente no sentido da noção, porque ela só pode sair da evidência quando eles encontram o pensamento ocidental. É encontrando o pensamento ocidental que eles vão perceber que há um implícito pedagógico e assim um recurso de pensamento. Você acha alusões, é sempre citada, mas jamais estudada.
A noção de Kung Fu não tem equivalente na cultura europeia. É uma noção que se deve trabalhar, uma noção interessante a estudar agora que é possível de colocar em perspectiva o Kung Fu, o Sam Faat com as tradições ocidentais que não desenvolveram esta noção.